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Síndrome do Overtraining ou 'Síndrome da Recuperação Incompleta'?

  • Foto do escritor: Blog Prof. Wellington Lunz
    Blog Prof. Wellington Lunz
  • 20 de out. de 2021
  • 8 min de leitura

Atualizado: 25 de nov.

Resumo: quando falamos em “excesso de treinamento”, muitos já pensam no overtraining (OTS). Mas a OTS é multifatorial e bem difícil de diagnosticar. Ao analisar estudos sobre o tema, percebi que o volume e a intensidade não explicam sozinhos a OTS. Em muitos casos, o que realmente parece explicar é a recuperação incompleta. Por isso, proponho uma reflexão: 'talvez devêssemos abandonar o termo “Síndrome do Overtraining” e adotar algo como “Síndrome da Recuperação Incompleta ao Treinamento Físico”. 


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Prof. Dr. Wellington Lunz - Universidade Federal do Espírito Santo 


O que é excesso de treinamento? Seria treinar com elevado volume? Se sim, o que seria exatamente ‘elevado volume’?

Ou seria treinar com elevada intensidade? Se sim, qual a duração mínima para considerarmos algo como ‘excesso’? quantas sessões?

Vamos refletir (cientificamente) sobre esse tema espinhoso!

Quando leio ou ouço a expressão “excesso de treinamento”, a primeira coisa que vem à mente é a síndrome do overtraining (OTS).

A síndrome do overtraining é multifatorial e continua sendo de difícil diagnóstico, apesar de avanços nas últimas décadas.

Talvez a tentativa mais bem sucedida de diagnóstico até o momento seja o consenso publicado conjuntamente pelo Colégio Europeu de Ciência do Esporte (CECE) e o Colégio Americano de Medicina do Esporte (mais famoso pela sigla: ACSM) (Meeusen et al., 2013).

Por definicação, a síndrome do overtraining se desenvolve ao longo de um treinamento. Portanto, não se refere a intervenções de curtíssima duração (ex: uma ou poucas sessões). Mas quantas sessões seriam necessárias?

Bom, aí a coisa começa a complicar, pois precisaríamos, antes, responder a outra pergunta difícil: Quando é que o acúmulo das sessões de treino passa a receber o status ‘treinamento’?

Mas, por ora, vou me concentrar na síndrome do overtraining... E dois componentes parecem muito claros na síndrome do overtraining:

(1) treinamento físico (afinal, não seria síndrome do overtraining se não houvesse treinamento físico).

(2) perda de desempenho físico (>10%). Mas sobre isso temos problemas.

De fato, essas duas coisas estão contempladas no algoritmo proposto pelo CECE e ACSM (Meeusen et al. em 2013). Mas temos questões inquietantes aqui! Veja:

Grandou et al. (2020) fizeram uma boa revisão sistemática envolvendo "treinamento de força (TF), overreaching e overtraining".

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Overreaching, para quem não sabe, refere-se a perda de desempenho induzida pelo treinamento físico, mas que tem recuperação rápida (poucos dias).

A síndrome do overtraining, por outro lado, pode demandar várias semanas para restabelecer a normalidade. E também envolve múltiplas alterações psico-fisiológicas, hormonais, metabólicas, imunes e da composição corporal.

Nessa revisão de Grandou et al (2020), eles encontraram apenas 22 estudos. E isso é pouco para um conceito que tanta gente finge dominar.

Mas há algo ainda mais espantoso: 10 desses 22 estudos diagnosticaram a síndrome do overtraining sem sequer ter havido perda de desempenho físico. Ou seja, teria verdadeiramente ocorrido síndrome do overtraining nos participantes? O desempenho é um dos critérios.

Outra coisa inquietante são os delineamentos de alguns estudos. Veja isso:

Um pesquisador bastante famoso em síndrome do overtraining é o cientista norte americano Andrew C. Fry (University of Kansas).

Ele desenvolveu um protocolo para induzir síndrome do overtraining (creio que na década de 1980). Ao longo dos anos ele fez algumas adaptações, mas há algo que chama bastante atenção: a curta duração do protocolo.

Um protocolo famoso do Andrew Fry é realizar 14 dias de treinamento de força, usando o exercício agachamento no Smith, com 10 séries x 1 RM (total de 140 ações máximas).

Nesse protocolo, a síndrome do overtraining é caracterizada principalmente pela perda de desempenho e necessidade de algumas semanas para recuperação.

Mas o próprio Fry é co-autor em um estudo (Nicoll et al., 2016) cujo protocolo induziu overreaching usando muito mais reps. O protocolo foi de 7,5 dias, 2 sessões/dia, 10 séries x 5 reps (70% 1RM), também fazendo agachamento.

Repare que, ao final, esse protocolo teve 750 reps. Isso é aprox. 5,3 vezes mais reps que o anterior. Apesar disso induziu apenas overreaching.

Ou seja, o volume de treino (reps x carga) foi maior no segundo protocolo, mas apenas o primeiro gerou OTS. Se você quiser entender bem o que é volume, leia depois esse post aqui.

A duração do treinamento de força, em ambos os protocolos, foi bem curta. Será que uma ou duas semanas já poderiam ser chamadas de 'treinamento'? (isso é discutível... deixemos para outro momento). Seja como for, é algo bem diferente da realidade de atletas.

Além do volume, outra diferença importante entre esses dois protocolos é a intensidade. O primeiro com 1RM (força máxima), e o segundo com 70% de 1 RM.

E, no segundo protocolo, quando a velocidade do movimento caia 90% por duas reps seguidas, eles reduziam a carga em ~4,5 kg... Ou seja, evitava-se o ‘máximo esforço’. Ambos os estudos foram com pessoas com experiência em treinamento de força.

Nesse momento é possível interpretar algumas coisas:

(1) Há problemas metodológicos em muitos estudos envolvendo treinamento de força e síndrome do overtraining;

(2) Protocolos de curtíssima duração já podem gerar síndrome do overtraining;

(3) Nível de esforço pode ser mais importante que o volume para gerar a síndrome do overtraining (mas sobre ‘nível de esforço’, há outro componente importante que irei apresentar daqui a pouco).

No meu imaginário, a síndrome do overtraining sempre envolveria treinamento de médio a longo prazo, e, também, alto volume. E sobre isso, veja esse artigo:

Cavedon et al. (2020) estudaram homens jovens que faziam CrossFit há pelo menos 1 ano, e subdividiu em 2 grupos: os que faziam >10h/sem (~12h / n=13) (Grupo 1); e os que faziam <10h/sem (~7h / n=11) de CrossFit (Grupo 2).

Veja que o primeiro grupo tinha um volume de ~12 h/sem, e, apesar disso, não há relato de síndrome do overtraining. E 12h semanais de CrossFit é bastante desgastante. Então o volume não seria tão problemático?

Em outro estudo, Cadegiani et al. (2019) investigaram diferentes variáveis fisiológicas, bioquímicas, hormonais, alimentares, composição corporal, e desempenho físico de atletas do CrossFit saudáveis vs overtrained.

Eles concluíram que a síndrome do overtraining no grupo overtrained não foi induzida exclusivamente pelo excesso de treinamento, pois os grupos cumpriam periodização similar.

Eles perceberam que o grupo overtrained fazia uma dieta de longo prazo com baixo teor de carboidratos (<5,0 g/kg/dia), e isso pode ter sido uma das principais causas da síndrome do overtraining. Então não depende só do treinamento de força!

Juntando tudo até agora, podemos fazer outras interpretações. Nem a intensidade e nem o volume parecem os principais responsáveis pela síndrome do overtraining.

O que mais fortemente parece explicar a síndrome do overtraining é a ‘RECUPERAÇÃO INCOMPLETA’ (e na recuperação eu já incluo a necessidade de alimentação correta).

É interessante que o número de séries para hipertrofia é bem pequeno, como mostrei em vários posts (aqui, aqui, aqui, aqui e aqui), e passar do ideal não produz resultados melhores. A recuperação incompleta deve explicar parte disso.

Nesse momento eu questiono se não seria o caso de chamarmos a síndrome do overtraining de ‘Síndrome da Recuperação Incompleta ao Treinamento Físico’?

Ou alguma expressão similar! Voltarei a isso ao final.

Outra coisa que vale destacar, e pouca gente se atenta a isso, é que temos coisas que podem ser mais perigosas que a síndrome do overtraining.

Em 2019, o National Collegiate Athletic Association (NCAA) e o Collegiate Strength and Conditioning Coaches Association (CSCCa) fizeram um guia para retorno seguro ao treinamento físico (Caterisano et al., 2019).

Nesse guia, uma coisa que chama muito atenção são os tipos de exercícios (ou sessões de treino) mais associados a rabdomiólise.

E rabdomiólise é uma doença causada por destruição/lesão severa de células musculares, com consequente liberação de seus componentes na circulação. Isso pode até gerar disfunção renal irreversível e, pior, morte.

Recentemente, na introdução de algum artigo que lí, dizia que a prevalência de morte por rabdomiólise pode chegar a 10%. Lembro disso porque me impressionou muito esse número. Vale ressaltar que a rabdomiólise não é induzida só por exercício físico.

Mas, voltando ao guia, eles dizem que todos os estudos sobre rabdomiólise referenciados compartilham as seguintes características comuns:

(1) Eram atletas ou militares realizando alto volume de exercícios de força submáximo (ex: usando peso corporal como apoio, barra fixa, etc.) até a fadiga e/ou num período de tempo limitado (contrarrelógio).

(2) A maioria dos casos ocorre quando expostos a um novo regime de exercícios, ou quando se retorna de um período de destreinamento.

(3) Muitos ocorrem em condições ambientais quentes.

(4) A maioria sem descanso superior a 24h.

Veja que aqui estamos falando de risco de morte induzido por uma (ou poucas) sessões de exercícios. Não se trata de síndrome do overtraining.

Mas esses itens mostram que o problema não é exatamente o volume e/ou intensidade em si, mas uma recuperação incompleta. Seja para a mesma sessão ou entre diferentes sessões.

E aí concluo esse post novamente questionando: Será que em vez de chamarmos de ‘síndrome do overtraining’ não deveríamos chamar de ‘Síndrome da Recuperação Incompleta ao Treinamento Físico’?

Pode parecer uma simples mudança, mas dar mais peso causal à má recuperação pode fazer com que as pessoas entendam melhor a importância da recuperação completa. Isso me parece mais correto e seguro.

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 Até o próximo post!



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Autor: Wellington Lunz é o proprietário desse Blog e do site www.wellingtonlunz.com.br. É bacharel e licenciado em Educação Física, Mestre em Ciência da Nutrição e Doutor em Ciências Fisiológicas. É Professor da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES) desde 2009.

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